quinta-feira, 31 de março de 2011

Texto lindo de pai para filha...


Lina,
Chegamos a Paris há três anos. Você não falava uma palavra de francês. Nem o seu sotaque tinha se firmado, já que vivera um ano em São Paulo e quase dois no Rio. A mudança não a assustou nem um pouco. Você tinha menos de três anos e gostou da informação de que Paris estava cheia de carrosséis.
Chegamos num domingo. Nosso primeiro passeio foi a Montmartre, onde sabíamos que havia um carrossel permanente. Nossa primeira providência prática foi ir à Samaritaine, no dia seguinte, comprar um carrinho-de-bebê. Lá aprendemos juntos como é carro-de-bebê em francês, poussette. Aproveitei e te comprei dois bonequinhos, um príncipe e uma princesa. Também viemos a aprender a tradução de “carrossel”, manège. Você andou em dezenas de carrosséis em Paris. O da Place d’Italie, o das Tuilleries, o do Hôtel de Ville, o do Jardin du Luxembourg e sobretudo o do Jardins des Plantes, com animais extintos, em frente à sua escola. Um euro, uma volta.

Suas aulas começaram na quinta-feira seguinte. Você era a única que não falava francês na classe de vinte-e-cinco crianças da Petite Section de la Maternelle da escola da rue Buffon. À noite, em casa, quando alguma coisa caiu no chão, você disse a sua primeira expressão em francês, que certamente ouvira na escola, naquele dia: Oh la la!
Escola pública, cujas aulas começavam às oito e meia da manhã e terminavam às quatro e meia da tarde. Você nunca se sentiu à margem nem se queixou de isolamento. Ao contrário. Sempre quis ir à escola. Eu ficava imaginando se, de supetão, me botassem numa classe com vinte-e-cinco búlgaros, qual seria a minha reação. Acho que não gostaria.
Aos poucos, você foi entendendo o que falavam, e se fazia compreender. Sua primeira professora, Noëlle, nos contou que sabia o que queria dizer “molhado” em português. Foi a primeira e única palavra em português que Noëlle aprendeu. Em contrapartida, rapidamente você começou a falar bonjour, merci, au revoir.

Hoje, você brinca e sonha em francês. Corrige a minha pronúncia. Faz trocadilhos e jogos de palavras. Usa expressões e gírias. P’tit dèj em vez de petit déjeuner (café-da-manhã), cap no lugar de capable (capaz). Ficou com dois nomes, Lina e Liná. Os franceses pensam que você é francesa.
Jamais vi um processo de aprendizagem tão fluido, rápido e eficaz. Sim, sei que com a maioria das crianças acontece a mesma coisa. Ainda assim, me espanta não só a facilidade mas a alegria com que você adquiriu o seu segundo idioma. O seu temperamento, além da sua inteligência, talvez tenham a ver. Há também a curiosidade e o afeto de seus coleguinhas. De Esther, que, um pouco maior que você, te protegeu e ajudou nos primeiros tempos. E houve o empenho e a capacidade de suas maîtresses, Marie-Hélène, Violeine e Cécilia, além de Noëlle, e das diréctrices, madames Goirand e Anner.

3, rue de L’Essai. Nosso endereço. No Cinquième. Uma ruazinha de uns cem metros, começando no Boulevard Saint-Marcel e terminando na rue Poliveau. “Essai” porque numa rua paralela, a Geoffrey Saint-Hilaire, no tempo de Luiz XIV, havia um mercado de cavalos. Os compradores iam experimentá-los (faire l’essai) no terreno ao lado.
Digitávamos o código, 61A84, a porta fazia um cléc, destrancava, e entrávamos no saguão. Víamos, à direita, se não havia correspondência na nossa caixa de correio. Abríamos a outra porta interna, virávamos à esquerda e subíamos o lance de escadas até o primeiro andar. À direita, a porta vermelha-escuro do nosso apartamento, com seu capacho em forma de cachorro, que você chamava de petit chien e insistia para que não pisássemos no rosto dele.

Dentro, logo à direita, ficava o toilete. À esquerda, os cabides onde pendurávamos os seus casacos. Seguindo no corredor, à direita ficava a pequena cozinha, com a pia, o fogão, a máquina de lavar, a mesinha e o pequeno armário. Ali passei várias horas. Não tivemos empregada e uma das minhas funções domésticas era lavar louça. Logo fui coroado Roi de la Vaisselle.
Ao lado da cozinha ficava o seu quarto. Você dormia na cama da esquerda, sempre com o seu macaquinho de estimação. Ali, todas as noites, você ouviu histórias de princesas, de fadas, de feiticeiras, de heróis, de seres fantásticos. Cendrillon, La Belle au Bois Dormant, Achiles, Ulisses, La Belle et la Bête, Raiponce, Hélène, Athéne, Blanche Neige, Jason, Les Argonautes. Os irmãos Grimm, Perrault, Homero, mitologia, contos populares, folclore.

No fim do corredor ficava o banheiro, com a pia e a banheira. Ao lado esquerdo, o meu quarto-escritório. Na sala ao lado ficava a mesa de almoço, o sofá e a pequena televisão. Apartamento antigo, com lareira na sala e nos dois quartos. Na lareira da sala montamos o seu castelo de madeira, onde você botou todos os seus personagens. Ao príncipe e à princesa, acrescentamos o rei, a rainha, a bruxa, outra princesa, o cavaleiro, o cavalo. Você passava horas na frente da lareira com os bonecos, imitando vozes, inventando histórias.

As janelas da sala e do meu quarto davam para a rua, onde poucos carros passavam, apesar de, à esquerda, haver uma garagem. O seu quarto e a cozinha davam para o pátio interno. Descíamos lá para jogar o lixo na poubelle. Cumprimentávamos e trocávamos algumas palavras com os vizinhos: o velhinho meio surdo que sempre falava que ia esfriar; a moça do térreo, com um novo namorado a cada encontro; a senhora da porta em frente, que veio do Irã e trabalhava na Printemps do centro comercial da Place d’Italie; o casal de jovens que ficava em frente à sua janela; o menino que subia a escada de patins; o casal de gordões que morava em cima do nosso apartamento, e felizmente só marchava a passos pesados e apressados na hora em que acordávamos, sete e meia da manhã.
Você plantou uma muda de morangueiro no jardim do pátio. Durante duas primaveras nos regalamos com os teus moranguinhos.

A tua, a nossa vida, transcorriam entre o Sena, o Jardin des Plantes, a rue Mouffetard, a Grande Mesquita e a Place d’Italie. Dentro desses limites ficavam a casa, escola, a biblioteca, nossos bares e restaurantes, nossos cinemas e estações de metrô, nossas padarias e mercados, nossos amigos, a tua escola de música e a de balé, ambas da Prefeitura.
Nesses marcos, os nossos rituais. O café-da-manhã do sábado, no Baratin, no Poliveau ou no Le Sympathique, onde você pedia chocolate e pão com manteiga, e falava sem parar enquanto eu dava uma olhada no jornal. Eu logo desistia da leitura: nenhuma notícia valia os teus casos. O poulet de télé comprado no açougue nas manhãs de domingo, depois do cinema.
A barbearia, a mais antiga do bairro, na rue Daubenton, onde cortávamos o cabelo. Você, com o barbeiro baixinho e de cavanhaque. Eu, com o gordão bigodudo. Barbearia tradicional, de profissionais habilidosos no uso da navalha e das tesouras. Quantas vezes fomos lá? Dezenas.

O baile da rue Mouffetard, que logo virou “La Mouff”, onde dançamos, escutamos e cantamos velhas canções, acompanhadas pelo acordeon do senhor de boina e cabelos brancos. Compramos então um disco e não paramos de escutar e cantar “La mer”, “Au lycée Papillon”, “Un jour mon prince viendra”, “Le temps des cérises”, “Douce France”, “Lily Marlène”, “Papa n’a pas voulu”, “Je ne suis pas bien portant”.

Não ficamos só no nosso bairro. Viramos Paris de cabeça para baixo. De metrô, ônibus e a pé. Em piqueniques, caminhadas, visitas. Acho que a lista dos teus passeios preferidos incluiria a catedral de Notre Dame, para ver os relevos atrás do altar, em madeira, contando cenas da vida de Jesus.
E o Bois de Vincennes, onde você foi dezenas de vezes, com a gente, com a escola e com a turma do Centre des Loisirs, onde você ficava nas quartas-feiras.
E o Museu d’Orsay, onde estão, no último andar, os quadros de Monet e Van Gogh.
E o Sena, entre as pontes de Austerlitz e Neuf, seja à bordo do Bateaubus ou andando pela margem esquerda.
E o Jardin du Luxembourg, onde você via o teatrinho do Guignol, andava no carrossel, passeava de pônei e voava na balança.
E o Opéra Garnier, onde vimos “Giselle”, “La Belle au Bois Dormant” e “Carmen”.
E a Place des Vosges, onde no verão da canicule você tomou banho peladinha na fonte.
E o Jardin des Tuilleries, também no verão, para ver Paris lá de cima, da roda-gigante, pular na cama-elástica e pescar patinhos de plástico.
E as piscinas, mais a Jean Taris que a Pontoise, cuja água era mais fria.
E o Train Bleu, onde comemoramos sempre o aniversário da mamãe, mais pelo ambiente do que propriamente pela comida.
E o Institut du Monde Arabe, onde você teve uma aula sobre os quadros de Matisse no Marrocos e copiou um deles.
Dias depois, aor irmos de ônibus para Saint-Germain, você nos contou como foi o atelier Matisse au Maroc. Contou com tantas minúcias e detalhes, com tal objetividade, que tive medo que você viesse a ser jornalista. Ainda bem que você disse que quer ser princesa, ou bailarina, ou poeta, ou ilustradora, ou padeira.
Esses lugares são muito íntimos, demasiadamente nossos, para serem também Paris.

Não ficamos só em Paris.
Fomos à Savóia, onde fizemos guerra de neve em Annecy e vimos a catedral rosa de Strasbourg.
Ao Luberon, com seus campos de lavanda, seus vales suaves, seus delicados vilarejos .
A Marselha, onde visitamos a ilha-prisão do Conde de Monte Cristo.
À Bretanha, onde choveu o tempo todo e comemos galettes e crêpes até enjoarmos.
Aos Alpes, onde contemplamos marmotas e picos gelados.
À Normandia, onde escureceu quase à meia-noite.
Ao Périgord, com suas grutas, castelos e pinturas pré-históricas.
À Córsega, onde tomamos banho de rio e o céu tinha infinitas estrelas.

Não ficamos só na França.
Fomos à Croácia, onde visitamos a Gruta Azul e andamos nas ruas de mármore de Dubrovnik.
Não levamos para lá a poussette. Era fogo te carregar no colo no calor do verão. Você andava direitinho, mas às vezes cansava. Te contei que o marechal Tito, um antigo presidente da Croácia, proibira os pais de levar as crianças no colo. Só os bebês eram autorizados. Assim que viam pais com crianças no colo, os guardas intervinham. Você acreditou. E passou a andar o tempo todo. Quando você não aguentava mais, te pegávamos no colo. Apreensiva, você vigiava. Assim que um policial aparecia, voltava para o chão. De retorno à França, inventei que Jacques Chirac tinha feito uma lei igual à do marechal Tito. Nunca mais precisamos da poussette, que foi dada à Jeanne, a irmãzinha do Rémi. Está com ela até hoje.
Fomos a Veneza, aos seus canais, às suas igrejas, à laguna, à Academia, a Rialto, à praça de San Marco, onde os pombos te atacaram.
Fomos à Islândia. Tomamos banho de piscina sob a neve. Nadamos na Lagoa Azul. Vimos as cachoeiras congeladas. Você riu à beça quando escorreguei e caí ao lado de um gêiser.
Em busca do frio, das estrelas e da neve, fomos também à Lapônia. Tombamos do trenó de huskies. Não conseguimos pescar nada no buraco de gelo. Vimos campos imaculados de neve, pacatas renas, um iglu que dava num labirinto, um lago congelado, florestas de pinheiros imóveis, a pequena aurora boreal, o rubro amanhecer – et tous ces moments se perdront, dans l’oubli, comme les larmes dans la pluie…

Paris era o nosso ponto de retorno, o teu centro seguro, a tua vida verdadeira. A bela Paris. A cidade mais linda do mundo. A cidade que é obra humana. A cidade onde a beleza foi conquistada, construída e preservada. A cidade das grandes vistas. Dos monumentos gloriosos. A cidade cheia de história, e tão viva, tão dinâmica.
Em Paris, ma petite, você aprendeu o lento revolver das estações. Cada uma delas a mostrar uma cidade diferente. As tuas preferidas eram a primavera, com sua flores e folhas verdejantes, com o casaco finalmente deixado em casa, junto com o gorro, as luvas, a meia-calça de lã, o cachecol; e o inverno, com seus dias curtos, o vento, o cinza, céu baixo, o frio. Mas você amava também o outono, o demorado cair das folhas do Jardins des Plantes, os corvos e pássaros desaparecendo.
Em Paris, você aprendeu a arte da amizade. Joseph, Anton, Emma, Naama, Louisa, Timo, Esther, Jasmina, Pierre, Marie, Chloé, Nissim. No fim, até da Andréa você gostou. Queria convidá-la para ir em casa. A Andréa que você achava uma bruxa, e bolou mil planos para se livrar dela. Com eles você brincou, jogou, conversou, discutiu. Todos eles te amaram e a todos você amou.

Em Paris você teve o seu primeiro amor.
Rémi. Rémi Turquier. Um menininho francês: magricelo, branquinho, de óculos, sempre despenteado, tímido, inteligente. Vocês passaram três anos na mesma classe. Na Petite Section, vocês tinham direito a uma sesta depois do almoço. Ficavam em beliches vizinhos. Começaram a se contar histórias. Depois, filmes imaginários. Depois, inventaram máquinas fantásticas. Ficaram amigos. Os melhores amigos. Namorados, amoureux. Não namorados de brincadeirinha, por pressão do grupo. Vocês eram muito pequenos, tinham três anos, para se dedicarem a essas bobagens.
Na Moyenne e na Grande Sections, continuaram juntos. Lado a lado na classe, no recreio, na volta da escola, em passeios, em visitas à casa de um e outro, em festas de aniversário, na viagem à colônia de férias. As professoras, os colegas, os pais dos colegas, nossos amigos e conhecidos, todos diziam: eles formam um par, um casal, são namorados. Vocês se viam como namorados. Monsieur Paul, nosso marchand aux journaux, ouviu você falar do Rémi e perguntou se ele era seu melhor amigo. “Mais non, c’est mon amoureux!”, você respondeu. De mãos dadas, lá iam vocês, na nossa frente, na rua, andando e falando sem parar: patati e patata e patati e patata.
Quando você via algo interessante, ou um bom filme, ou ouvia uma história legal, a sua primeira reação era exclamar: “Preciso trazer o Rémi aqui!”, “É preciso, absolutamente, convidar o Rémi para ver esse filme!”, “Preciso contar isso ao Rémi!”

Nas viagens, você procurava folhas, flores e gravetos para levar ao Rémi. Na Islândia, pegou uma pedra em forma de celular e nos avisou: “estou telefonando para o Rémi”. Você deu um avião, um jogo de memória, desenhos e pinturas para ele. Ele te deu um saco de avelãs que colheu na casa dos avós, um anel com um golfinho e várias fivelinhas de cabelo. Vocês se amavam, ma chérie.
Por isso, tiveram os seus percalços. Passaram alguns dias cabisbaixos. Você nos disse que o Rémi não te amava mais. E o Rémi contou ao avô que a Liná não o amava mais. Depois, voltaram à alegria de sempre. Ao te esclarecer o sentido da palavra jalousie, ciúme, você me disse: o Rémi teve duas crises de ciúme. Numa, você estava de mãos dadas com o Joseph. O Rémi se encolerizou, berrou, tentou bater no Joseph e em você. No dia seguinte, voltaram à alegria de sempre. Noutra vez, você chorou porque o Rémi estava de mãos dadas com a Emma. Horas depois, voltaram à alegria de sempre.
Todos os teus problemas em Paris – os joelhos esfolados, os tombos, os resfriados, as briguinhas com os colegas, o prato de legumes, a irritação proveniente do cansaço, a teimosia – todos foram resolvidos, na média, em dez minutos.

Como separar Liná e Rémi, duas crianças apaixonadas de cinco anos? Como se separar de Paris? Ficamos preocupados, nós, os pais de Rémi, Natalie e Serge, os avós dele, os nossos amigos. Quando vinha o assunto da volta ao Brasil, você dizia que queria ficar em Paris. E falava de Rémi. Uma vez, brincando em casa, você disse a ele, muito séria: Tu va me manquer, Rémi, tu va beaucoup me manquer.
Há um mês, vocês passaram um sábado juntos. Foram à piscina Jean Taris com a Flavia. Se divertiram até ficar com os lábios roxos de frio. Fui encontrar vocês na sorveteria em frente à igreja de Saint-Médard. Você me disse, orgulhosa: “Veja como ele está penteadinho! Fui eu que o penteei”. Em casa, brincaram até tarde. Cada um na sua cama, ouvimos o ronronar, patati, patata, até que exaustos, caíram no sono. No dia seguinte, fomos levar Rémi até a casa dele, na rue de la Clef. Vocês ficaram tristes. Já na porta, na despedida, você começou a chorar, e foi chorando pela rua. Depois, Natalie contou que Rémi passou o resto do dia silencioso e arredio.

Cada um reage de uma maneira à cerimônia do adeus. Frédéric, o garçon do Baratin (que uma manhã, quando cheguei atrasado e com a cara amarfanhada para o café, me deu dois comprimidos para ressaca), disse: merde! Monsieur Paul perguntou, desolado, à mulher: “Mas como eu não vou ver Liná crescer?” Eles te deram três bonequinhas e uma revista de presente. Soria, a melhor amiga de mamãe, evitou uma despedida formal. Receio de chorar, acho. Monsieur Bonbon, do Austerlitz, te deu um saco de balas e pirulitos. Monsieur André, do Poliveau, parou de me cobrar o café e me chamou para um copo de vinho. Serge e Natalie nos convidaram para um piquenique. Anton e seus pais, Sophie, Abdel, Louisa e Timo também foram, além de Jeanne e Rémi.
Claudine e Hubert nos chamaram para um almoço de domingo, num restaurante chinês do Treizième. Keiko e Patrice também foram. As quatro crianças estavam lá. Era a mesma turma com a qual passávamos o domingo de Páscoa, numa casa de subúrbio à beira do Sena. Chegamos debaixo de tempestade. Patrice fez a sua hilariante imitação de Chirac. Na saída, estava sol, passeamos pela Butte-aux-Cailles. Keiko nos deu uma gravura caligráfica japonesa.

Às vezes, no entanto, eu te pegava desanimada. Ou pensativa. Às vezes, você me abraçava muito, e forte. Às vezes eu sentia que você estava triste, mesmo que não soubesse o que era a tristeza.
Te ensinei a Valsa da Despedida. Passamos a cantá-la em francês:

Faut-il nous quitter sans espoir
Sans espoir de retour?
Faut-il nous quitter sans espoir
De nous revoir un jour?
Ce n’est qu’un au revoir, mes frères,
Ce n’est qu’un au revoir!
Oui, nous nous rev’rons, mes frères,
Ce n’est qu’un au revoir!

E em português:
Adeus, amor, eu vou partir
Ouço ao longe um clarim
Mas onde eu for irei sentir
Os teus passos junto a mim
Estando em luta, estando a sós
Ouvirei a tua voz
A luz que brilha em teu olhar
A certeza me deu
De que ninguém pode afastar
O meu coração do teu
No céu, na terra, onde for
Viverá o nosso amor

De vez em quando, eu trocava o mes frères, e o “amor” do primeiro verso, por “Paris” e “Rémi”. Eu queria te ajudar, queria nos consolar. Você sorria. O seu sorriso maroto.
Vimos Rémi pela última vez nas Arènes de Lutèces. Vocês brincaram. Retomaram um caminho secreto, que dava no “ponto de vista” – um olho com um ponto no meio, que Rémi desenhara dias antes numa pedra. O tempo passou. Precisávamos ir embora. Mas você queria mais um jogo, mais uma brincadeira, mais alguns minutos, uns poucos instantes, um finzinho. Mas também queria, eu sei, ficar com Rémi. Para sempre. Você saiu chorando do parque. Estava sentida. Passaram os dez minutos e você voltou a sorrir. Estava novamente animada quando comeu um hamburguer na rue des Écoles.
Eu, não. Eu estava com o coração engruvinhado. Eu tinha um monstro na garganta. Eu estava moído pelo remorso. Eu pensava no tempo, esse bicho que anda e anda, pensava na máquina do mundo. Eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, as mãos pensas.

Escrevo essa carta, minha filha, que um dia você lerá, para dizer que, contra toda evidência, acredito que Paris continuará contigo. O esquecimento, bem sei, é inexorável. Mas a memória também. Uma certa Paris continuará a viver dentro de você. Uma imagem da cidade, ainda que fugaz e esmaecida, restará na tua lembrança. A figura fugidia do amor e da felicidade.
Bisou,

quarta-feira, 30 de março de 2011

Ah, o copo de requeijão

Você se levanta no meio da noite — e então ele (ou ela), com aquela sensualidade postiça que o sono empresta à voz, aproveita para pedir um copo d’água. Você se sente um pouquinho explorada(o), a ideia era ir ao banheiro, ali ao lado, mas noblesse oblige: com ligeira irritação, a viagem no escuro é estendida até a cozinha.


Faz tempo que vocês estão juntos, já viram um montão de vezes esse filme em que o pedinte noturno ora é um, ora é outro. Mas nenhum dos dois atentou para um detalhe. No começo da história, quando se punha no menor gesto o empenho em agradar, a água vinha no melhor copo que houvesse no armário. De cristal, se possível. Agora repare: o que você vem trazendo para matar a sede do ser amado é um reles copo de requeijão.

Não tenha dúvida, alguma coisa mudou — para pior. O que você tem nas mãos é mais do que um recipiente de vidro barato até há pouco habitado por um laticínio espesso. É o próprio símbolo da avacalhação que, sub-repticiamente, vai pondo a pique os mais sólidos Titanics conjugais.

Exagero? Então veja: quem se detém na prateleira dos requeijões cremosos, no supermercado, em geral não está querendo um copo. Quer uma coisa gostosa para passar no pão, de manhã. Quando a coisa gostosa acaba, alguém — não culpe só a empregada — lava a embalagem, remove o rótulo e põe no armário. Você não pediu aquela coisa vulgar, mas, por inércia e desleixo, lá está ela, convivendo com os belos copos da marca francesa Arcoroc. Aí o outro pede água — e você, em vez de levar no Arcoroc, leva no copo de requeijão. A vulgaridade encarnada nesse intruso se instalou entre vocês. E creia: a menos que se tome uma providência, não vai ficar aí. Como no alcoolismo, não se fica no primeiro copo.

Mas pode ser que você, no supermercado, tenha pensado também no continente, além do conteúdo. Problema seu. Só não venha dizer que alguns deles são até jeitosos. São todos horrendos — inclusive aqueles esguios, retilíneos, que talvez sejam os piores: copos de requeijão que não ousam dizer o seu nome, esses pretensiosos se fingem de Arcoroc. Devem ser tratados como os impostores que são.

Aqueles “culturais”, vamos dizer, com reproduções de obras de arte, então nem se fala. Já que ninguém vai acabar com eles, aqui vai uma sugestão: por que ao menos não buscar uma correspondência entre a estampa e o conteúdo, impondo alguma lógica a essa sofrível pinacoteca matinal? Para o requeijão light, as figuras longilíneas, no limite da anorexia, de Modigliani ou Giacometti; para o outro, transbordante de calorias, a banha sem complexo das personagens de Renoir ou Botero. Ou deveria ser o contrário?

Repare como é difícil livrar-se dessa praga. Você põe na área de serviço, para que a faxineira o carregue, e ele reaparece no armário. Embora feito de vidro vagabundo, não se quebra — ao contrário dos outros, mais bonitos e mais frágeis, cujo lugar vai aos poucos ocupando. Cada vez mais numerosos, fazem parte do refugo doméstico, daqueles trastes que por alguma razão não se botam fora, e que um dia se decide levar para o eterno provisório do sítio ou da casa da praia.

Como a barata, que vai sobreviver à espécie humana, é bem possível que o copo de requeijão dure mais que o casamento. Se isso acontecer, nenhum dos cônjuges vai reivindicá-lo na partilha das “sobras de tudo que chamam lar”, como na canção de Francis Hime e Chico Buarque. E se a separação não dá certo, ele não servirá sequer para um brinde comemorativo: pois entre dois copos de requeijão, como se sabe, não há tintim possível, no máximo um chocho tec-tec

Humberto Werneck

quarta-feira, 23 de março de 2011

O pai possível

E quando você, minha filha, descobrir que eu não uso capa vermelha, não sei voar, meu corpo não é de aço e, portanto, estou longe de ser infalível? Este dia chegará em breve. Num simples piscar de olhos ao melhor estilo Jeannie é um gênio, seremos outros. Talvez você não se decepcione. Talvez, no pacto que engendramos sem maior esforço, a descoberta lhe percorra o corpo em silêncio. Será assim: sem notar que a infância já lhe abandonou a agitação dos dias, você terá diante dos olhos outro homem. Serei eu, posso assegurar, teu pai, em cujo reflexo estará o bebê de rosto redondo e olhos azul imensidão. Mas aí, neste exato momento, terei de confessar: não, eu nunca fui o dublê do Clark Kent, apesar dos eternos óculos e da maneira desajeitada ao caminhar. E, quem sabe, a sombra na parede apenas descortine a esquálida figura de um cavaleiro solitário. Chegará a hora de descobrir que o nosso reino encantado tem pouquíssimos metros quadrados. E se não pagarmos água, luz e condomínio, podemos perdê-lo para outra família real. É preciso lhe contar algumas verdades.


Não, o nosso time nem sempre vence. Na verdade, quase sempre perde. Raramente, empata. Eu não inventei aquela história de que você tanto gosta. Não sou autor de nenhuma história muito original. Todas são apenas um mosaico, um recorte, um apanhado torto das leituras que me acompanham. Não, eu nunca li aquele livro com mais de mil páginas que fica na sala. Um dia, te explico por que ele ainda segue ali. Tampouco, sei de cor os versos de Pessoa. Acho que não sei nenhum verso de cor. Minha memória, você descobrirá, é péssima — um queijo catarinense de quinta categoria. Eu nunca marquei um gol inesquecível. Fiz, confesso, meia dúzia de gols bem sem-graça. Quando chego em casa às terças-feiras à noite, trago na ponta da língua a resposta: “Vencemos; fiz dois gols”. E você apenas sorri, conivente em excesso com as minhas ficções suburbanas.

Não dei voltas ao redor do mundo. Nunca vi um leão de perto. Não conheço elefantes. Não cruzei os mares atrás de baleias gigantes. Jamais escalei uma montanha de gelo e, tampouco, no topo coloquei uma bandeira minúscula. Todas as nossas aventuras estão aprisionadas naquela coleção de capa colorida em seu quarto. Não sei muito bem o que diz aquele livro sobre sereias escrito em inglês, que você sempre me pede para ler. Sou péssimo em inglês. Não sei nada a respeito das orações subordinadas substantivas. Vivo com dúvidas sobre crase. Sempre consulto o dicionário antes de escrever a palavra “incógnita”. Tenho medo de ficar cego. Mas não me importo com a surdez. Na infância, tinha medo de escuro e poeira embaixo da cama. Agora, só tenho medo de escuro. E de altura. E de cores primárias. E de escada-rolante. E de rinocerontes na esquina. E de prego enferrujado. E de médico de plantão. E de…

Também não sou muito bom para ganhar dinheiro, fazer muitos amigos e ser famoso. Nunca inventei nenhuma receita gastronômica. Todos os poucos pratos que elaboro saem de um livrinho de bolso que escondo na última gaveta da pia da cozinha. Quando dão certo, bendigo a minha imensa capacidade criativa. Quando desandam, amaldiçoo a péssima edição que me guia diante das panelas. Tudo em silêncio, distante do teu olhar atento.

É na distância que, às vezes, entristeço-me, envelheço, choro. E, em breve, quando você me encontrar, descobrirá um atrapalhado super-herói, cujo manual de uso perdeu-se na longa viagem intergaláctica até aqui.

Por Rogério Pereira

quarta-feira, 16 de março de 2011

Sábio...

É verdade que um beberrão obtém o esquecimento. Certamente se lhe oferecem breves instantes de fuga e sossego, mas sempre regressará do mundo da ilusão e tudo se lhe deparará como antes. Ele não se torna mais sisudo, não colhe conhecimentos, não sobe nenhum degrau.

Sidarta

quinta-feira, 10 de março de 2011

Que venha urano :)

Uranus takes 84 years to circle the Sun, staying seven years in each sign, so for most, this will be a completely new trend.
This time Uranus will remain at your side until 2019.

The universe does not always work on your timetable

sexta-feira, 4 de março de 2011

Fazendo pacto com o demônio

me rendendo a Mefistófeles...

"Paciência, paciência; as coisas irão melhor; pois que eu te confesso, meu querido amigo, que tu tens razão; e depois que sou obrigado todos os dias a tratar com os homens, e que vejo o que eles são e por que forma se conduzem, estou mais contente de mim. Sem dúvida, já que nós somos construídos de maneira que comparamos tudo a nós mesmos, e nós mesmos a tudo, segue-se que a felicidade e a miséria existem nos objetos a que nos ligamos, e então nada há mais perigoso do que a solidão. A nossa imaginação, propensa por natureza a elevar-se e nutrida com imagens fantásticas de poesia, cria para si própria uma ordem de seres, da qual nós somos os mais inferiores. Todas as coisas nos parecem maiores do que realmente são, e tudo nos parece superior a nós; e esta operação do entendimento é natural. Conhecemos que nos faltam muitas coisas! E o que nos falta parece que outrem possui! Então o adornamos com tudo que possuímos: assim fizemos um ente perfeito - mas um ente tal só existe nas nossas imaginações. Portanto, quando consideramos um ser feliz, associamos a idéia: é obra nossa, não é realidade.
Pelo contrário, quando, apesar da nossa fraqueza e contratempos, continuamos com assiduidade o nosso trabalho sem nos distrair, notamos muitas vezes que navegamos mais, bordejando, do que outros fazendo força de vela e de remos. E...quem tem um verdadeiro conhecimento de si, marcha igual aos outros ou avança ainda mais. "

Goethe (FAUSTO)

Despedida

Não são vocês. Juro. Vocês são o máximo. Eu é que... Não, não vou me culpar, não vou dizer que “sou um idiota” ou “não sei o que está acontecendo”. Eu sou legal, vocês também e está tudo certo: é que tem uma hora que as coisas acabam. Ou continuam, só por preguiça ou falta de coragem de darmos um fim a elas, até irem murchando, embolorando. E isso eu não quero, nem vocês, certo?
Eu comecei aqui em 2001. Era um moleque de 23 anos, que ainda estranhava ter saído da escola, ter que ganhar a vida e pendurar os próprios quadros na parede. Não tinha me acostumado com o fato de que -- como escrevi numa das primeiras crônicas -- “se fizesse alguma coisa muito errada, iria para a cadeia, não para a sala do diretor”. Eu era um espião do lado de lá do terceiro colegial, dando (e procurando) uma piscadela cúmplice: ei, esses adultos são muito estranhos, né?
Durante todo esse tempo, eu disse tudo o que sabia (e o que não sabia, também) sobre escola, pais, primeira vez, namoros, drogas, anorexia e o sentido da vida. Opinei, com a maior cara de pau, sobre Deus e o mundo. Acontece que agora já estou com os dois pés fincados em território inimigo: tenho uns fios de barba brancos e -- confesso, envergonhado -- um multi-processador, não faço a menor idéia de quem seja Amy Winehouse e preocupa-me muito mais saber como vou criar meus filhos do que a relação com meus pais, entendem?
Vocês não sabem o quanto aprendi com vocês. Sério, não é demagogia de despedida. Para escrever aqui, semana sim, semana não, por sete anos, fui obrigado a olhar para trás, para frente, para os lados e, principalmente, para dentro. Escrevendo o Estive Pensando eu me tornei cronista e, de certa forma, adulto.
Sabe o que? Acho que pra vocês também vai ser muito legal. Nunca mais vão ter que me ouvir reclamando da adolescência, falando que o amor é lindo e a vida, apesar de difícil, é bela. Vão conhecer pessoas novas, descobrir maneiras diferentes de usar as frases e as crases, construir parágrafos e discursos, terão outros pontos de vista e pontos finais. Vão viver coisas que não viveriam, se continuassem comigo.
Quando começamos, éramos todos muito novos. Nós crescemos juntos, aprendemos juntos e nos entregamos, inteiros, por bastante tempo. Agora é hora de irmos cada um pra um lado, com os corações abertos e tentarmos ser felizes – não para sempre, porque isso não existe, mas sempre que possível. Muito obrigado por tudo. Mesmo.

Antonio Prata ( texto do despedida da revista capricho)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Nos encontramos de novo aos 33


Você chegou no olho do furacão, coincidência, destino??? Foi como um anjo que chegou para me acalmar e me confortar...

Obrigada, por me escutar, me entender, não me julgar, ficar sem beber junto comigo, beber lorinhas, nadar no mar, passear pelo Rio, fazer planos, papos interessantes, dançar como se não ouvesse o amanhã, até o tapa na pantera!!.. tudo isso me fez me sentir mais EU.

Nos encontramos de novo aos 33? No Leblon, com vista para o mar e revendo esses passados 5/6 anos....

Enquanto isso, continue sempre assim, essa mulher interessante, mutável e que alegra tudo quando está presente.... aproveita cada dia mais essa sua vida estrangeira que está cada vez mais com a sua cara, suas bolsas, seu amor, sua casinha a-là Oficina de Agosto... a todas a novas mudanças....

amu você...

terça-feira, 1 de março de 2011